30.7.07

Baralho


Era uma pessoa complicada que gostava de coisas simples. Gostava de leite frio. Café sem açúcar. Maçãs, Laranjas e Bananas. Só. Iogurtes naturais. Meses com 30 dias. Nem um a mais. Dias regidos por horas, regidas por minutos fluidos. Gostava de textos escritos a arial corpo 12. De gelados de nata sem mais nada. De telefonar e não ouvir ninguém do lado de lá. Escrever a preto, desenhar a lápis. Palavras pequenas e simples. Traços direitos e conclusivos.
Não rasgava o papel que deitava fora. Dobrava-o em quatro e punha-o no lixo.
Apanhava folhas e guardava-as. Das árvores e dos cafés. Secava-as e lia-lhes os veios, as linhas da idade. Guardava-as e sentia-as. Dobrava-as em quatro e punha-as no lixo. Parava no caminho para as recolher. Sempre o mesmo. Da casa à esplanada, onde se sentava. No lugar que lhe estava guardado. Gostava de pessoas simples, que falavam sem gritar, sem gesticular. Que falavam devagar e acompanhavam a língua com o olhar.
Torrada com manteiga. Copo de leite frio. Café sem açúcar. Aguardava. Obrigada.
Na cadeira, na esplanada, no jardim, na rua, perto de casa, arrumava a simplicidade a cada passo, em cada gesto. Entre um e outro, o seu mundo complicou-se. Baralhou o gesto e escreveu a lápis, desenhou a caneta preta, deitou o café no copo de leite frio, rasgou as folhas erradas do caderno e soltou as folhas que tinha a secar. Baralhou o gesto quando ouviu aquela mulher com as mãos a gritar, e os olhos a dizer muito mais do que falar.

27.7.07

Duvidas?


Era para ser longo, brusco e drástico. Foi curto, suave e indefinitivo.

Era para ser, mas não foi. Chegou ao centro e acanhou-se com as hipóteses das respostas. Ficou no âmago da questão a questão do ser, mas não foi ou será?
Pelo que não foi, mas era para ser, infinitas conjecturas se podem lançar.
Cuidado. O fosso está perto e é fundo. E uma vez caídas lá, nunca mais se conseguem apanhar.

25.7.07

Combinações


Azul eléctrico e vermelho sangue.
Verde ervilha e amarelo torrado.
Roxo espiritual e azul turquesa.
Castanho chocolate e laranja fruta.
Preto e branco.

24.7.07

Paralelipípedo Analítico



















Um paralelipípedo psicanalítico é como um círculo.

De um lado passamos para o outro,
pelo vértice,
e temos outro lado de análise.
Ao chegar a novo vértice,
um outro lado da questão.
Escurtinado esse lado,
deparamo-nos com novo vértice
e nova perspectiva.
No final deste lado,
o outro vértice espera por nós.
Deste lado passamos para outro,
pelo vértice,
e mais outro lado da análise.
Ao chegar a novo vértice,
um outro lado da questão.
Escurtinado esse lado,
deparamo-nos com novo vértice
e nova perspectiva.
No final deste lado,
o outro vértice espera por nós.


Um paralelipípedo psicanalítico é como um círculo.

Arrumador do tempo


Sem ninguém saber, pegava no tempo e arrumava-o. Servindo-se para isso de um programa de edição de tempo, composto de várias pistas com várias faixas. Organizava-as aleatória e desprendidamente, como bocados de tempo que eram e isso apenas. Como se o tempo valesse pelos minutos e segundos e não pela sua vivência. Dispensava faixas de tempo relativamente curtas para tarefas de caractér de higiene pessoal, e outro tanto para alimentação. À necessidade do sono era entregue uma faixa maior, mas nunca fixa, enquanto que o trabalho era a faixa mais extensa do reportório. Do que sobrava no espaço, ficava o tempo. Para os humanos.

10.7.07

Haikus III


Está à direita da janela,

mas ninguém dá por
ela.

Pela meada do fio
perdi as contas
à vida.

A lua perdeu a compostura
entre um beco
e uma viela escura.

Um cheque alugou
uma casa com chão
e cobertura.

Os meus pés
têm bicos de papagaio
nas pontas.

Palavras farpas









Os judaístas acreditam que as palavras são poderosas. Como os produtos químicos, elas mudam a química interna do corpo.

Eu acredito que são tão fortes como as acções. Verbalizar uma vontade ou uma maldade pode ter consequências tão concretas, como sendo as nossas próprias mãos a executar tal desejo. Todos os dias são trocadas um incontável número de palavras pelo mundo, que manifestam intenções, disposições, razões e emoções. Ou um conjunto confuso de tudo isto.
Há palavras que não significam nada, são apenas a espuma de encher os espaços vazios. Há outras que têm a força de uma catarata. Palavras que libertam sorrisos, descontrolam lágrimas, provocam murros, disparam fugitivos, escondem magoados, iludem enganados, abafam ostracizados, vangloriam exarcebados. Palavras que fazem e dizem e acontecem. Pequenas farpas que não se apagam como no papel, com a borracha ou um simples delete no Word. Palavras que marcam, que doem e que nos fartam! Palavras que nos torturam, angustiam e abandonam. Não queremos ser ouvintes, mas ser surdos. Falar outra língua, rezar para que o gongo toque e nos salve ou que uma sirene as abafe. Sons em forma de palavras que têm o poder de arrancar bocados, de provocar estilhaços, de nos deixar mudos e cansados.

4.7.07

HIV, UVA, UVB, BSE


Cuidado. Quando vir estas siglas, fuja.
De uma forma ou de outra, dizem que matam.

H


Havia um H

que cansado de ser mudo
um dia deu um grito
e deixou tudo
surdo.