Queimava o céu com descuido, em longas largadas de pulmões sujos. Tossia e repetia.
O lápis trémulo na mão segurava-lhe as ideias entre a alma e o papel. Arrumava-as à medida que espalhava as nuvens cinzentas pelo céu.
Punho firme, um traço ao alto, outro traço ao baixo. Traço ao alto, traço ao baixo. Um rectângulo. Um prédio. Pilhas de lares. Círculos. Círculos grandes e pequenos, muitos. São as árvores a enfeitar, porque uma cidade precisava de adornos. Pegava nos guaches e sentia o prédio a ganhar vida e as folhas das árvores a abanar. Um pouco de vento e estava quase.
Segurou a folha para ver a contra luz. Faltava só um pouco de brilho e assinar.
Augusto, Julho de 2006.
Levantou-se da cadeira, apoiado na mesa e começou a andar para dentro de casa. Procurava o casaco, mas não se lembrava onde o deixara. Com as mãos, tacteava o sofá, o cadeirão, o cabide e encontra-o arrumado no seu lugar. Veste-o, confirma se tem a carteira no bolso, pega na sua bengala e sai. A corrente de ar, bate a porta com força. Dá a volta à chave e começa devagar a descer os degraus do prédio antigo onde mora. Todos estes passos eram exercícios de visualização. Talvez por treinar tanto, até já conseguia ver as baratas a subir as escadas e os canos, por fora das paredes.
Vai sozinho dar o seu passeio matinal. Tira os cigarros e acende um bafo, para o ajudar a caminhar pela calçada do velho bairro de Lisboa, onde é conhecido como Fortes.
Enquanto olhava para ver se ainda está tudo na mesma, a bengala avisa-o que não. Andavam novamente a esburacar a rua. O que seria desta vez?
Vai até ao café do grupo e pede um curto escaldado. No vagar de quem tem tempo, senta-se, acende outro e pergunta o que andam a fazer.
- São os tipos da câmara que andam pr’aí... parece que é por causa da água.
- é... também me disseram isso Sr. Fortes, mas aquilo não vai demorar. Não se preocupe, que não vai atrapalhar os seus passeios.
- Não é pelos meus passeios... era para saber se seria preciso pintar uma fonte no seu lugar.
Sai do café e continua a andar de cigarro na boca, a bafejar o ar. Pára na mercearia para comprar leite e pão. O que lhe valia era a modernidade ainda não ter chegado ao bairro, e tudo estar exactamente nos mesmos sítios de quando foi para lá morar. De pão, leite e bengala na mão já era mais complicado acender o cigarro. Mas insiste, insiste e está nesta insistência quando a Dona Deolinda, do cabeleireiro, passa nesse embaraço e lhe diz,
- Deixe lá isso Sr. Fortes! Esse tabaco ainda o vai matar.
- Se me matar, eu pinto um caixão bonito para me enterrar.
Para o fim do passeio ficavam sempre as flores. Para irem mais frescas e à sua Rosário agradar, pensava. Levado pelos diferentes cheiros, não havia dúvida, era ali mesmo.
- Bom dia... queria...
- ... um ramo de margaridas brancas, como habitual, não é Sr. Fortes? Tem de ir pensando noutras flores, porque no Inverno estas não dão.
- Nessa altura eu pinto-as, respondeu.
Pagou, agradeceu e saiu.
Chega a casa pelo caminho inverso, pousa as compras na cozinha e arruma o leite no frigorífico. Fecha o saco do pão com um nó forte.
Coloca as margaridas na jarra preferida de Rosário e deixa-as junto das suas cinzas. Senta-se na varanda, pega no lápis trémulo e imagina a fonte que ficaria bem na rua do bairro. Primeiro os traços grossos do lápis, depois os pormenores e por fim as cores.
De seguida pinta margaridas. Muitos jarros de margaridas. Muitos. Muitos. Muitos.
A florista tinha razão e ele não podia deixar que a sua querida ficasse sem flores, um dia. Pintou margaridas até anoitecer.
Três dias depois, à hora habitual do seu passeio, é levado em braços para o Alto de S. João, num bonito caixão de madeira. Não tão bonito como aquele que ia pintar, se tivesse tido tempo.
No bairro nasceu uma fonte, e da varanda da casa onde Augusto se sentava, ainda hoje caiem margaridas até ao chão.
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