21.2.07

Uma cidade



















Uma rapariga atrasada. Um casal de reformados. Uma mãe atravessa a estrada. Uma criança ao colo a chorar. Um homem sai do trabalho. Um autocarro passa. Uma rapariga tropeça. Um miúdo ri-se. Uma senhora acelera. Uma mota vira. Um casal troca abraços. Um pai pega no filho em braços. Um velho chora. Uma mulher olha para mim de lado na paragem de autocarro. Os semáforos continuam. A estrada não pára. Vendem a Cais e jornais. Mais uma paragem. Entra uma mulata com cara de farta. Uma rapariga atrasada para um encontro. Um miúdo a chorar. Uma bola perdida. Rola até ao fundo do mar. Um casal apaixonado. Um homem a beber. Um rapaz dá um piropo. Uma rapariga a corar. Um casal aos gritos. Uma mulher a divorciar-se. Uma rapaz ri com cara de apaixonado. Um velho à espera com um ar cansado. Tudo é repetido. Tudo é um fardo, no ritmo da cidade, longo e atrasado.

16.2.07

Um dia nós aprendemos, de Shakespeare


Depois de algum tempo tu aprendes a diferença,
A subtil diferença entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E tu aprendes que amar não significa apoiares-te,
E que companhia nem sempre significa segurança.
E começas a aprender que beijos não são contratos
E presentes não são promessas.
E começas a aceitar as tuas derrotas
Com a cabeça erguida e olhos adiante,
Com a graça de um adulto
E não com a tristeza de uma criança.
E aprendes a construir todas as tuas estradas no hoje,
Porque o terreno do amanhã
É incerto demais para os planos,
E o futuro tem o costume de cair no meio do vão.
Depois de um tempo tu aprendes
Que o sol queima se ficares exposto por muito tempo.
E aprendes que não importa o quanto tu te importes,
Algumas pessoas simplesmente não se importam...
E aceitas que não importa quão boa seja uma pessoa,
Ela vai ferir-te de vez em quando e tu precisas perdoá-la por isso.
Aprendes que falar pode aliviar dores emocionais.
Descobres que se leva anos para se construir confiança
E apenas segundos para destruí-la,
E que tu podes fazer coisas num instante,
Das quais te arrependerás para o resto da vida.
Aprendes que as verdadeiras amizades
Continuam a crescer mesmo a longas distâncias.
E o que importa não é o que tu tens na vida,
Mas quem tu tens na vida.
E que bons amigos são a família
Que nos permitiram escolher.
Aprendes que não temos que mudar de amigos
Se compreendemos que os amigos mudam,
Percebes que o teu melhor amigo e tu
Podem fazer qualquer coisa, ou nada,
E terem bons momentos juntos.
Descobres que as pessoas
Com quem tu mais te importas na vida
São-te tomadas muito depressa,
Por isso sempre devemos deixar
As pessoas que amamos com palavras amorosas,
Pode ser a última vez que as vemos.
Aprendes que as circunstâncias e os ambientes
Têm influência sobre nós,
Mas nós somos responsáveis por nós mesmos.
Começas a aprender que não te deves comparar com os outros,
Mas com o melhor que podes ser.
Descobres que levas muito tempo
Para te tornares na pessoa que queres ser,
E que o tempo é curto.
Aprendes que não importa aonde já chegaste,
Mas para onde estás a ir.
Mas se tu não sabes para onde estás a ir,
Qualquer lugar serve.
Aprendes que, ou tu controlas as tuas acções
Ou elas te controlarão,
E que ser flexível não significa
Ser fraco ou não ter personalidade,
Pois não importa quão delicada e frágil
Seja um situação,
Existem sempre dois lados.
Aprendes que heróis são pessoas
Que fizeram o que era necessário fazer,
Enfrentando as conseqüências.
Aprendes que a paciência requer muita prática.
Descobres que algumas vezes
A pessoa que tu esperas que te chute quando tu cais
É uma das poucas que te ajuda a levantar.
Aprendes que maturidade tem mais a ver
Com os tipos de experiência que tiveste
E o que tu aprendeste com elas
Do que com quantos aniversários já celebraste.
Aprendes que há mais dos teus pais em ti
Do que tu supunhas.
Aprendes que nunca se deve dizer a uma criança
Que os sonhos são uma parvoíce,
Poucas coisas são tão humilhantes
E seria uma tragédia se ela acreditasse nisso.
Aprendes que quando estás com raiva
Tens o direito de estar com raiva,
Mas isso não te dá o direito de seres cruel.
Descobres que só porque alguém não te ama
Da forma que tu queres que te ame,
Não significa que esse alguém
Não te ame com tudo o que pode,
Pois existem pessoas que nos amam,
Mas simplesmente não sabem
Como demonstrar ou viver isso.
Aprendes que nem sempre é suficiente
Ser perdoado por alguém,
Algumas vezes tu tens que aprender
A perdoar-te a ti mesmo.
Aprendes que com a mesma severidade com que julgas,
Tu serás em algum momento condenado.
Aprendes que não importa
Em quantos pedaços o teu coração foi partido,
O mundo não pára para que tu o consertes.
Aprendes que o tempo não é algo
Que possa voltar para trás,
Portanto, planta o teu jardim e decora a tua alma,
Ao invés de esperares que alguém te traga... flores.
E tu aprendes que realmente podes suportar...
Que realmente és forte,
E que podes ir muito mais longe
Mesmo depois de pensares que não podes mais.
E que realmente a vida tem valor
E que tu tens valor diante da vida!
As nossas dádivas são traidoras
E fazem-nos perder
O bem que poderíamos conquistar,
Se não fosse o medo de o tentar...

14.2.07

Morri



Morri

Passeio na calma, por isso sei que morri.
Não é tão mau como pensei.
Não me dói, mas não sei ainda.
Ainda não sei muito bem porque estou aqui.
Não sei se quero ficar já aqui.
Lembro-me das multicores de coisas boas.
Vou ou fico?
Lembro-me do amarelo confusão.
Repetido. Repetido.
Onde fico?
Volto para a confusão que se repete.
Onde fico?
Num ritmo repetido.
Onde fico?
......................
Onde é que eu fico?
Vou ou fico?
Viro!
O amarelo confusão sobe
enquanto eu desço o caminho da minha indecisão
e continuo sempre com a mesma pergunta no espírito:
Vou ou fico?
Toco nas coisas para ver se ainda as sinto.
Mas nada!
Sou um vazio cheio de tudo a tentar manter-se vivo.
Mas estou do lado errado do rio.
Vou ou fico?
Uma luz, branca, forte e cada vez mais perto
parece querer dizer-me o caminho.
E eu grito: VOU OU FICO?
Acho que vou.
Respiro!
Sossego
Adeus confusão, adeus caixão.
Agora sim.
Morri.
Fim.

9.2.07

O meu corpo de quem é?


















Nasço com ele e vivo com ele todos os dias, há quase 30 anos. Numa relação de estima e cuidado, e por vezes de raiva e desagrado. Vivo com ele 24 horas sobre 24 horas e é ele que me leva onde quero, embora, nem sempre tão depressa como eu quero. Mas ele tem as suas limitações e eu tenho de o respeitar por isso. Também se ressente, também sofre. Também tem sentimentos. O meu corpo fala com os outros e muito comigo. Por isso, às vezes nem sei o que lhe digo, mas sei que ele me está a ouvir no suspiro.
O meu corpo é só meu desde que o tenho comigo e com ele faço o que quero, quando quero e como quero. Tudo o que o meu corpo produz e gera é meu também e é a mim que compete tomar uma decisão, depois de falar com ele. Uma decisão a dois. Entre mim e o meu corpo.
O meu corpo é meu. Os pelos, os cabelos, os sinais, as borbulhas, as unhas, as marcas, as cicatrizes, as lágrimas, o sangue, o pus. Tudo, tudo meu. Quando morrer pode ser da ciência, pode ser para os outros, mas enquanto eu for viva o meu corpo será só meu e será dos dois a decisão do que acontece com ele. Ninguém o pode prender, ninguém o pode obrigar, ninguém o pode violar. Mas a verdade, é que mesmo que eu acredite que ninguém pode, a verdade é que o podem prender, o podem obrigar e o podem violar, mesmo que eu não concorde.
Outro ser, a quem o meu corpo não pertence, acha-se no direito de vir e dizer o que eu posso e não posso fazer com ele. Outro ser que tem o seu corpo, quer mandar no meu. Mas porquê? Afinal, o meu corpo de quem é?

6.2.07

Bengalas

As bengalas têm várias formas, cores e tamanhos. Estão normalmente disponíveis, no corredor de um Hospital, nas lojas de ortopedia, nas clínicas, centros de saúde e por vezes perdidas no meio da rua.
As bengalas têm como principal função ajudar aqueles que, por qualquer motivo, perderam a capacidade de locomoção na sua plenitude. Que precisam de ajuda para se endireitar, andar mais seguramente, ou de uma apoio para os primeiros passos após uma recuperação. É para isso que elas servem. As bengalas de madeira, de ferro e de plástico. É para isso também que servem as bengalas humanas. Pessoas disponíveis, como se num corredor de hospital estivessem encostadas, à espera que os coxos e enjeitados peguem nelas, e as usem para dar os primeiros passos, até conseguirem andar pelas suas próprias pernas. No corredor são deixadas as bengalas que já não são precisas. As de madeira, de ferro, de plástico e as humanas.

Dedicado à Sofia. Para que nunca mais deixes que façam de ti uma bengala humana.

2.2.07

Chuva


















Cruzei-me contigo e uma gota caiu seca no chão. Olhei para o céu e lá prendi as outras gotas todas, com fios e pontos, num lugar que só eu sei, para que não caiam mais no chão. Vou deixá-las lá ficar, para que o céu tenha sempre chuva e os meus olhos nunca mais tenham água para chorar.

1.2.07

Tudo bem?


Sim. Está tudo bem. Está sempre tudo bem, ou não? Três palavrinhas apenas fazem-nos esquecer. Há quatro anos sem um aumento, nem ajuste no ordenado, mas está tudo bem. Desde que dê para pagar a casa e o carro. O petróleo a subir e os juros a aumentar. Precisamos da água, do gás e da luz para viver. Na comida não podemos poupar, temos os filhos a crescer. Livros e música para quê? Afinal, temos as contas para nos entreter. Decide-se onde cortar. Corta-se na vida. Na alegria.
Então, o que é que podemos fazer? Apertamos mais o cinto, mas tudo bem, afinal ser magro é saudável. Ser pobre é que não. Faz bem à saúde do Estado andar a população com o coração na mão. Mas tudo bem. Está tudo bem. Quem se importa com o do lado, quando tem um milhão?
Ficar doente não é opção, mas Deus queira que não. Ficar de baixa sem receber é o preço a pagar, mais o dos medicamentos e das consultas, isto se não houver exames a acrescentar. No final ficamos pior do que estávamos, com o valor a pagar. Mas se um amigo nos encontra na rua e nos pergunta, claro que está tudo bem. Nem que o marido nos bata em casa, ou ande metido com alguém.
Sim. Está tudo bem, pelo menos por palavras, que têm o dom de nos fazer esquecer, por momentos, o desalento em que estamos.