30.7.08
Vento
Gosto quando o vento
tem a força de empurrar o meu
corpo displicente
e de arrastar o meu
cabelo como se ele não
me pertencesse.
29.7.08
Para Louis, o Artista...
"Em Março fui a Paris para uns colóquios na Sorbonne e na Fundação Gulbenkian: estranha coisa falar e ouvir falar dos meus livros. As pessoas tão generosas e eu a sentir que mal comecei. Em Março ou Abril? Princípio de Abril, julgo que princípio de Abril, as flores começavam, cheirava um bocadinho a sol. Jantava todas as noites com a Dominique e a Victoire, a mulher e a filha do Christian Bourgois, meu editor, que morreu em Dezembro. Meu editor, meu amigo. Tenho tantos editores e não sou amigo de quase nenhum. Do Christian era, sou. Nunca foi um homem fácil. Eu também não. E, no entanto, que maravilha de conversas no silêncio, que partilha tão grande. Desde muito cedo, como ele o disse, fez seu o preceito de um general veneziano do século dezassete, chamado Montecuculi. Montecuculi não lembra ao Diabo. Afirmava o general que é preciso agarrar sempre a ocasião pelos cabelos mas não esquecer que ela é careca. E isto é o único programa de vida possível. A casa desabitada sem o Christian e no entanto a sua presença em toda a parte. Parece um paradoxo: não é. Jantares difíceis para mim, carregadinho de saudades. Tantos anos de trabalho juntos, decepções, alegrias. Não há escritor no mundo que admire tanto como tu, escreveu-me na carta em que anunciava o cancro. E depois três anos. E depois nada. A Dominique e eu falámos e falámos para mobilar o silêncio. Até de livros. A certa altura veio com um álbum da Plêiade dedicado a Faulkner, escritor dantes tão importante para mim: – O que o homem sofreu a vida inteira
disse ela. E de facto sofreu como um cão a vida inteira. Respondi
– Conheces algum artista que não sofra, conheces algum artista feliz?
Todos eles atormentados, contraditórios, num desespero e numa angústia constantes, mesmo sob o humor, sob a alegria. Os meus queridos russos, Tolstoi, Gogol, Tchecov. Scott Fitzgerald, que sustentava não ser possível escrever a biografia de um escritor porque ele é muitos. É necessário roermos as passas do Algarve para que o leitor tenha prazer. E que mistura de sangue e júbilo na criação, outros sentimentos de que não falo por pudor. Graham Greene agora, para variar: «um escritor é um homem de barba por fazer e copo na mão, cercado de criaturas que não existem». E Gogol destruindo toda a segunda parte das Almas Mortas, uma obra-prima, chorando. Já que estou em maré de citações lembro-me de Apollinaire, poeta com quem aprendi muito: «piedade para nós que trabalhamos nas fronteiras do ilimitado e do futuro». Era isso que ele suplicava: piedade para nós, tende piedade de nós. A beleza que nos dão saiu-lhes do pêlo, rasgaram a alma por ela. E a Dominique a olhar para mim com a tal piedade que Apollinaire desejava. Como é possível coexistirem num só homem ou numa só mulher tanto sofrimento e tanta exaltação? O apartamento do Christian, cheio de quadros, retratos, livros. As árvores dos Invalides, a rua Vaneau, onde Gide morava, a mesma do hotelzinho em que fico sempre, no quarto sessenta e cinco com vista para um jardim. Os pombos de Paris tão diferentes dos pombos de Lisboa, esguios, ferozes, poisados nos ramos, não nas casas. Piedade para nós, etc., piedade para o nosso trabalho. Quero morrer de caneta na mão, meu Deus fazei com que eu morra de caneta na mão a lutar com as emoções, as palavras. A lutar com o Anjo, pobre Jacob que sou. A gente deixa a pele nisto. Se alguma glória posso ter é essa: não os prémios, o reconhecimento, o louvor: apenas a sina de uma vida dedicada a tentar iluminar o mundo com a minha lanterninha. Por muito grande que seja não passa de uma lanterninha. Graham Greene enganou-se, as criaturas que ele diz que não existem, existem de facto: somos nós. Habitamos o Monte dos Vendavais, a Guerra e Paz, as Meninas de Velázquez, os trios de Beethoven, o Danúbio Azul, e ao habitar o imenso país que essas obras são vencemos o tempo e tornamo-nos imortais. Apollinaire dizia piedade para nós, e em lugar de piedade o que devemos sentir é gratidão: deram nexo à nossa existência. Fizeram da gente seres enormes, apesar de bichos da terra tão pequenos como no verso de Camões. Esta é a ditosa Pátria minha amada: nunca li tal coisa sem me comover. Parece tão simples, não é? Esta é a ditosa Pátria minha amada: reparem na mão que é necessária para chegar a isto. A Dominique:
– O que o homem sofreu a vida inteira
e é verdade. Sofreram a vida inteira, mas é graças a eles que estamos vivos. É graças a eles que somos dignos do Reino dos Céus, que trouxeram para a terra. E os pombos de Paris a olharem para mim de banda, com vontade de me engolirem. Por favor não me engulam por enquanto: há tantos livros em mim à espera de serem escritos."
António Lobo Antunes, Visão
Um conto em script
20 horas, Brasil, Rio de Janeiro. Começa a festa mais badalada do ano. As meninas da alta sociedade que tinham atingido a maioridade, iam estrear-se no baile de debutantes. Nervosas preparam-se para entrar. O chão é de um luzidio mármore branco.
01 hora, Portugal, Sesimbra. Num bar de praia está marcado um concerto reggae, seguido de um Dj. Os apreciadores amontoam-se lá dentro e à porta. O chão está coberto de areia.
21 horas, Inglaterra, Londres. Num restaurante japonês um grupo de amigos comemora um aniversário. Só falta uma pessoa, que está presa no trânsito, para o grupo ficar completo. O chão é de tábua de madeira corrida.
Maria põe o imaculado sapato branco, no primeiro degrau da escadaria. Coloca a mão no corrimão e finca os dedos, enquanto observa a composição da sala. Estava muita gente e ela não podia chamar a atenção. Os sapatos novos e muito altos prendiam-lhe a circulação nos pés.
Ana entra com as amigas na festa. A batida reggae já se sente e aproveita para exibir a sua figura, bem justa por baixo das calças de ganga e do top, ao ritmo descontraído da música. Uma manequim tem de estar sempre fabulosa, pensou. Olha à sua volta e vê outros colegas de profissão. Dirige-se a eles, enquanto folga o lenço que lhe aperta o pescoço.
Sara sai atrapalhada do táxi. Deixa cair o porta-moedas e molha o cinto da gabardina na poça de água, quando se baixa. Passa a mão pelo cabelo e compõe o gancho. Tinha de estar sedutora. Respira fundo e antes de empurrar a porta, puxa para baixo a armação do soutien, que lhe magoa o peito.
O pai de Maria inicia-a na primeira valsa, após a entrada glamourosa. Os pés continuam apertados, mas a dor ajuda a que se concentre mais. Enquanto vira e rodopia, coloca os olhos nos vestidos e jóias das outras, mas principalmente nos rapazes da sala. Era a sua apresentação oficial à alta sociedade brasileira, embora já conhecesse muito bem uma grande parte dela. A festa da sua maioridade vinha tarde. Há muito tempo que era mulher.
O fotógrafo da revista da moda tira a primeira fotografia a Ana. Mexe no lenço que a sufoca enquanto faz uma ou duas caras mais fotogénicas. Ao ritmo dos disparos do flash repara nas outras manequins da festa. Não era a sua primeira party rodeada de outros modelos, mas como habitual sentia-se insegura. Conhecia toda a gente do meio, mas não conhecia ninguém.
O aniversariante recebe Sara de braços abertos e convida-a sentar-se ao lado dele. Sente a armação do soutien a entrar pelas vértebras adentro e falta-lhe o ar. Tenta distrair-se com a conversa e a decoração do restaurante. A toda a volta cetim vermelho e preto, flores de lótus e lanternas. Antes do sushi, já tinha bebido dois copos de saké. Queria sentir-se solta e desinibida para fazer o que tinha vontade.
Maria finalmente pára para descansar os pés, que já não sente. Não que o pai dançasse mal, pelo contrário, mas querer esconder uns avantajados 39, numa forma de 38 só podia provocar o entorpecimento. Tudo corria como previsto. Ninguém desconfiava de nada. Ninguém se desmanchava.
Sara finalmente sente-se solta. Já nem sente a armação do soutien. Não é que este estado de espírito fosse natural. O saké fez a diferença pretendida. Estava perto do seu objectivo. Ninguém parecia importar-se com o que fazia.
A debutante Maria, decidida a mais umas danças com os rapazes novos, levanta-se e dirige-se para o centro do salão. Passa por um grupo de senhores distintos que entre dentes sussurram “...olha esta... toda de branco... não me engana... é uma das garotas insaciáveis das noites de máscara... sei pelo cheiro” Todos riem em uníssono, como só um clube privado pode fazer.
Ana, manequim de sorrisos amarelos, decide ir refrescar-se à casa de banho. Pelo caminho dos encontrões, encontra quem não queria. Afasta-se, desvia a cara, mas num puxão disfarçado de carinho, ele agarra-a pelo lenço do pescoço e chega-a de encontro ao peito. Passa-lhe a língua pela orelha e murmura... “foste a minha melhor virgenzinha... que saudades...”
Sara com o calor, do álcool e das hormonas, vai à casa de banho retocar a compostura. Molha o pescoço de olhos fechados enquanto ouve a porta a mexer. Abre os olhos de rompante com o toque de uma mão entre o peito e o soutien. A mulher revela-lhe ao ouvido “estás linda hoje... queremos os dois ficar contigo.”
Maria tenta sair num andar acelerado sobre o deslizante chão de mármore branco. Os pés não resistem e cai sobre o imaculado salão de baile.
Ana tenta soltar-se com um movimento brusco, mas o lenço na mão do homem aperta-lhe o pescoço e dá-lhe um esticão que a atira para o chão de areia do bar.
Sara com a sua mão pega na mão da outra e fá-la deslizar suavemente para fora do vestido. Ajeita a armação do soutien e quando dá o passo em direcção à porta, escorrega na humidade e cai seca no chão de madeira.
São 23 horas e acabou o baile.
São 04 horas e acabou o concerto.
São 00 horas e acabou o jantar.
25.7.08
24.7.08
Em Lisboa não se dá o troco à mão
Triste constatação a minha. Após uma semana de empenhada investigação concluí que nos cafés/ pastelarias/ esplanadas desta nossa cidade há um código que impede os empregados de entregar o troco em mão. O que me deixou já, por várias vezes, de mão estendida enquanto olho para as moedas a serem colocadas com estridente acompanhamento sonoro no balcão... 2 centímettros ao lado da minha mão. Eu não sei se é pelo estigma de ter a mão estendida, como se de uma esmola estivesse à espera, mas de facto o que tenho pago ultimamente por um pãozinho com queijo e um Compal Fresh, faz-me começar a pensar se não estarei à espera de uma esmola e não do troco.
Mas, dizia eu, não sei se é pelo estigma, mas a verdade é que não há o hábito de entregar o troco a quem já tem a mão estendida à espera dele. E isso chateia-me profundamente. Chateia-me tanto que hoje, acompanhada do meu mau-humor matinal, não me contive mais e repondi à senhora do café, num tom difícil de explicar, mas que se encaixava entre o comentário, crítica e a rabujice "mas porque é que não me dá o troco na mão? Estou aqui de mão estendida e a senhora coloca o troco em cima da mesa, faz-me fazer figura de parva e ainda perder mais tempo a amealhar estas pequenas moedas que teimam em ficar coladas ao balcão".... Acho que fui um bocado caústica, mas a verdade é que provoquei uma reacção numa mente que nunca antes tinha pensado nisso. Não sei em que é que a vida daquela senhora vai melhorar ou piorar depois da minha intervenção. Não sei em que é que a minha vida e a dos outros clientes daquele café vai melhorar ou piorar depois da minha observação, mas ao menos reclamei por um serviço que não estava a considerar adequado, e pode ser que assim, as pessoas desta cidade comecem a olhar mais para o outro, ou pelo menos comecem a dar o troco em mão.
23.7.08
22.7.08
Não é a morte que me mata
Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez é a desilusão de um quase. É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.
Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou. Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.
Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me pergunto, contesto. A resposta eu sei de cór, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos "Bom dia", quase que sussurrados.Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz. A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.
Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.
Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência porém,preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo.
De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar.
Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.
de Luís Fernando Veríssimo
19.7.08
11.7.08
Manifesto anti-quase
Muitas vezes falamos das vidas dos outros sem as conhecermos. É muito fácil dar palpites, conselhos, opinar e não perceber porque é que os outros às vezes têm certos comportamentos. É muito fácil dizer aos outros "não estejas assim", "pensa nas outras coisas", "andas sempre de mau-humor", "pensa no que tens de bom fora daqui". Pois a essas pessoas todas eu digo: Obrigadinho, mas não!
Primeiro porque se calhar o que tenho fora daqui ainda é pior, porque se calhar o meu mau-humor tem muitas razões para existir e porque se calhar eu sou de facto uma resistente e uma pessoa com muito mais força do que aquela que eu reconheço.
Não pretendo iniciar nenhum movimento sobre isto, pois sei que os conselhos e apoio dos outros são muito importantes. Quero apenas marcar a minha posição para que no futuro as pessoas pensem duas vezes antes de abrir a boca.
Eu sei pelos longos 30 anos de vida, que não se pode ter tudo, e que na vida nunca está sempre TUDO bem. Sei disso por dor própria, mas, se calhar não me apetece ser uma pessoa que se contenta com o pouco, ou com o médio, com o satisfaz menos, ou o suficiente. Posso não ter sido sempre aluna de Excelentes, mas coleccionei alguns Muito Bons, e é assim que eu gostava de ver a vida. Não tenho de me contentar com uma coisa boa, e conformar-me porque a outra é má. Não tenho de me sentir feliz porque só tenho uma das coisas bem, quando quero ter todas. Fazer isso é, para mim, reduzir à partida as minhas hipóteses de ser plenamente feliz. E eu acredito que se possa ser plenamente feliz se abandonarmos este satisfatório. Por isso, a todos os que me tentam mostrar "the bright side of life" eu só posso dizer: Obrigadinho, mas não! Boa sorte para vocês.
Hoje, vou jogar no euro milhões.
10.7.08
9.7.08
4.7.08
Ciclo de vida
Pega nas palavras, embrulha-as e mete-as na boca. Mastiga, mastiga e cria uma nova. Sem letras sem nexo. Atira-a para o ar e espera que um outro pegue nela e a embrulhe. Faça dela pastilha de mastigar e a atire para o chão, ou a cuspa para um caixote, até um outro a voltar a apanhar.
3.7.08
Há coisas que só eu é que devo pensar
Mas a verdade é que são coisas que me vêm à cabeça e eu não posso deixar de as dizer. Ontem vinha a pensar que a forma como as pessoas ligam (por telemóvel) para os outros e a forma como estacionam, pode dizer muito sobre elas. Passo a explicar: após uma hora de almoço telefonicamente concorrida, fui ver de quem eram as chamadas, mas quase não precisva de o fazer. Só pela maneira como cada um telefona, eu sei quem é. E atenção que eu tenho um toque igual para todas as chamadas.
E isso fez-me pensar como era eu quando telefonava para alguém e o que isso dizia de mim. Eu sou daquelas pessoas que pego no telefone deixo tocar até alguém atender, ou até chegar à caixa postal. E não insisto logo. Deixo passar uma boa meia-hora ou mesmo mais para repetir o telefonema. Analisei isto e concluí que sou uma pessoa que leva as coisas até ao fim, mas se não o consigo fazer quando quero, retomo até conseguir. Isso é de facto uma grande característica minha.
Em relação ao estacionar, e esta questão só se levantou agora, pelo facto do prédio onde eu trabalho ter sofrido um incremento de mais 100 pessoas e os seus respectivos automóveis. A rua antigamente calma e com lugares à escolha ficou o caos. Ora bem, esta situação obrigou-me a mudar de estratégia e foi então que percebi que passo pelos carros que estão estacionados já no início da rua (o que indica que não há lugares mais perto da porta) mas continuo a andar. E tento encontrar um "buraco" onde caiba o meu Corsa. E a verdade é que 95% das vezes consigo. Isto também quer dizer muito de mim, acho eu. E a minha análise tem a ver com o facto de ser uma lutadora e não me contentar com a primeira coisa que encontro. Eu vou mais à frente, espreitar, cutucar e fazer figas para que algo melhor esteja à minha espera.