30.5.07

Depois solta-te


Quando achares que consegues, sai do meu regaço e corta o cordão que te une. Quando puderes, sem tardia, vira as costas e afasta-te, com a segurança de que eu continuo a olhar por ti. Quando te permitires acredita que podes fazer muito mais e que és capaz de seguir os sonhos de menino. Não te prendas ao passado, mas não te esqueças dele. E vai em frente. Mesmo que eu já não esteja cá, avança. Eu vou olhar sempre por ti.

23.5.07

Mad about


É urgente repensar os valores. Nunca se viu tanta mobilização para ajudar a encontrar uma criança portuguesa. E perdoem-me se a memória me falha, mas realmente não tenho lembrança de uma aparato tão grande em volta de um desaparecimento de uma cidadã portuguesa como o que está em prossecução. Se as crianças são o futuro do Pais, não me parece que actualmente, os media e as autoridades policiais dêem assim muita importância ao futuro deste país, pois a preocupação está totalmente direccionada para uma estrangeira, turista, é certo, mas que não é filha da nação. E a questão que me paira há já vários dias é a seguinte: até que ponto a situação não empolou devido ao dinheiro envolvido. Agora todos querem ajudar a encontrar uma criança, ainda viva de preferência, quando diariamente milhares morrem por nem um copo de água potável terem para beber, nem uma mãe, nem um pai, nem nada. Com essas a movimentação de esforços existe, é certo, e de louvar, mas é uma verdade de tal modo instituída, que já ninguém se importa. Mas se a criança é loira e de olhos azuis, filha de um casal inglês da classe média alta, a situação toma contornos absolutamente gigantescos. Como se a situação fosse mais avassaladora que os milhares de cadáveres diários espalhados pelos países menos desenvolvidos. E eu pergunto, essas crianças não deveriam merecer mais a nossa atenção. Afinal, muitas delas, não só não têm uma mãe, como não têm um pai, e muito menos alguém que se preocupe se amanhã estão vivas ou não. É urgente repensar as prioridades.

17.5.07

Eu sei


Gosto do teu tom de pele e de voz, e gosto de como falas quando gracejas. Que mexas as mãos, claras e esguias, em movimentos simples. Gosto de um certo olhar e do interesse devagar. Que não me prendas mas me queiras agarrar, que vás mas não me deixes ficar. Para trás. De corpo, mas não no pensamento. Vou contigo porque sei que queres e não consegues. Dizer que não. Ao que te vai na alma e enche, enche, até te apertar as veias que te envolvem. O coração.
Eu sei...

Junho 2006

16.5.07

Perdemos o interesse


Num segundo, por uma palavra ou um gesto apenas.

Por algo que estávamos à espera e não aconteceu. Porque criamos expectativas e não há nada, nem ninguém, tão perfeito como as nossas expectativas. Perdemos o interesse entre o momento de abrir a porta do carro e o entrar, entre um comentário ou um esgar.
Numa esquina da rua, ou num telefonema, em que algo ficou por falar.
Onde terá ficado? Caído numa pedra da calçada, embrulhado na papelada, ou perdido pelo caminho à procura de uma qualquer estrada.
Procuramos na origem. Vamos à fonte, mas já lá não está. Tentamos os perdidos e achados, mas também ninguém o encontrou, ou então alguém ficou com o nosso interesse para si. Perdemos o interesse pelos amigos, pela família ou pelo amor. No fundo perdemos o interesse pelas pessoas.
Deixamos de nos importar com o que há para ver ou ouvir e ficamos apenas para ali, de lado, a olhar.
Perdemos o interesse nos horários, no trabalho, nas refeições e no cuidado. Deixamos de pentear o cabelo e ver o espelho. Na rua o olhar é desviado, porque vamos abandonados. Somos sem interesse para nós e para os outros.
Na busca do que perdemos, continuamos. Na busca é que nos perdemos.
Seguimos, tristes e mudos. Encontramos ou não encontramos? Pela busca vamos...

Margaridas


Queimava o céu com descuido, em longas largadas de pulmões sujos. Tossia e repetia.
O lápis trémulo na mão segurava-lhe as ideias entre a alma e o papel. Arrumava-as à medida que espalhava as nuvens cinzentas pelo céu.
Punho firme, um traço ao alto, outro traço ao baixo. Traço ao alto, traço ao baixo. Um rectângulo. Um prédio. Pilhas de lares. Círculos. Círculos grandes e pequenos, muitos. São as árvores a enfeitar, porque uma cidade precisava de adornos. Pegava nos guaches e sentia o prédio a ganhar vida e as folhas das árvores a abanar. Um pouco de vento e estava quase.
Segurou a folha para ver a contra luz. Faltava só um pouco de brilho e assinar.
Augusto, Julho de 2006.

Levantou-se da cadeira, apoiado na mesa e começou a andar para dentro de casa. Procurava o casaco, mas não se lembrava onde o deixara. Com as mãos, tacteava o sofá, o cadeirão, o cabide e encontra-o arrumado no seu lugar. Veste-o, confirma se tem a carteira no bolso, pega na sua bengala e sai. A corrente de ar, bate a porta com força. Dá a volta à chave e começa devagar a descer os degraus do prédio antigo onde mora. Todos estes passos eram exercícios de visualização. Talvez por treinar tanto, até já conseguia ver as baratas a subir as escadas e os canos, por fora das paredes.
Vai sozinho dar o seu passeio matinal. Tira os cigarros e acende um bafo, para o ajudar a caminhar pela calçada do velho bairro de Lisboa, onde é conhecido como Fortes.
Enquanto olhava para ver se ainda está tudo na mesma, a bengala avisa-o que não. Andavam novamente a esburacar a rua. O que seria desta vez?
Vai até ao café do grupo e pede um curto escaldado. No vagar de quem tem tempo, senta-se, acende outro e pergunta o que andam a fazer.
- São os tipos da câmara que andam pr’aí... parece que é por causa da água.
- é... também me disseram isso Sr. Fortes, mas aquilo não vai demorar. Não se preocupe, que não vai atrapalhar os seus passeios.
- Não é pelos meus passeios... era para saber se seria preciso pintar uma fonte no seu lugar.
Sai do café e continua a andar de cigarro na boca, a bafejar o ar. Pára na mercearia para comprar leite e pão. O que lhe valia era a modernidade ainda não ter chegado ao bairro, e tudo estar exactamente nos mesmos sítios de quando foi para lá morar. De pão, leite e bengala na mão já era mais complicado acender o cigarro. Mas insiste, insiste e está nesta insistência quando a Dona Deolinda, do cabeleireiro, passa nesse embaraço e lhe diz
- Deixe lá isso Sr. Fortes! Esse tabaco ainda o vai matar.
- Se me matar, eu pinto um caixão bonito para me enterrar.
Para o fim do passeio ficavam sempre as flores. Para irem mais frescas e à sua Rosário agradar, pensava. Levado pelos diferentes cheiros, não havia dúvida, era ali mesmo.
- Bom dia... queria...
- ... um ramo de margaridas brancas, como habitual, não é Sr. Fortes? Tem de ir pensando noutras flores, porque no Inverno estas não dão.
- Nessa altura eu pinto-as, respondeu.
Pagou, agradeceu e saiu.
Chega a casa pelo caminho inverso, pousa as compras na cozinha e arruma o leite no frigorífico. Fecha o saco do pão com um nó forte.
Coloca as margaridas na jarra preferida de Rosário e deixa-as junto das suas cinzas. Senta-se na varanda, pega no lápis trémulo e imagina a fonte que ficaria bem na rua do bairro. Primeiro os traços grossos do lápis, depois os pormenores e por fim as cores.
De seguida pinta margaridas. Muitos jarros de margaridas. Muitos. Muitos. Muitos.
A florista tinha razão e ele não podia deixar que a sua querida ficasse sem flores, um dia. Pintou margaridas até anoitecer.
Três dias depois, à hora habitual do seu passeio, é levado em braços para o Alto de S. João, num bonito caixão de madeira. Não tão bonito como aquele que ia pintar, se tivesse tido tempo.
No bairro nasceu uma fonte, e da varanda da casa onde Augusto se sentava, ainda hoje caiem margaridas até ao chão.

Julho 2006

11.5.07

A idade das coisas e as coisas da idade


Os mais velhos costumam dizer que já não têm idade para isto, ou para aquilo e que no tempo deles as coisas eram diferentes. A minha mãe costuma dizer que há uma idade para tudo e que eu deixei passar a idade de encontrar um bom companheiro e casar. Eu acho que a opinião da minha mãe é mais uma coisa da idade, dela. Acredito que há uma idade para cada coisa, mas não há uma idade limite para viver. Com a idade vamos percebendo que houve uma idade para fazer certas coisas que não nos imaginamos a fazer mais. É a partir do momento que tomamos essa consciência que começamos a ter as coisas da idade.