29.7.08

Um conto em script

QUEDA

20 horas, Brasil, Rio de Janeiro. Começa a festa mais badalada do ano. As meninas da alta sociedade que tinham atingido a maioridade, iam estrear-se no baile de debutantes. Nervosas preparam-se para entrar. O chão é de um luzidio mármore branco.

01 hora, Portugal, Sesimbra. Num bar de praia está marcado um concerto reggae, seguido de um Dj. Os apreciadores amontoam-se lá dentro e à porta. O chão está coberto de areia.

21 horas, Inglaterra, Londres. Num restaurante japonês um grupo de amigos comemora um aniversário. Só falta uma pessoa, que está presa no trânsito, para o grupo ficar completo. O chão é de tábua de madeira corrida.

Maria põe o imaculado sapato branco, no primeiro degrau da escadaria. Coloca a mão no corrimão e finca os dedos, enquanto observa a composição da sala. Estava muita gente e ela não podia chamar a atenção. Os sapatos novos e muito altos prendiam-lhe a circulação nos pés.

Ana entra com as amigas na festa. A batida reggae já se sente e aproveita para exibir a sua figura, bem justa por baixo das calças de ganga e do top, ao ritmo descontraído da música. Uma manequim tem de estar sempre fabulosa, pensou. Olha à sua volta e vê outros colegas de profissão. Dirige-se a eles, enquanto folga o lenço que lhe aperta o pescoço.

Sara sai atrapalhada do táxi. Deixa cair o porta-moedas e molha o cinto da gabardina na poça de água, quando se baixa. Passa a mão pelo cabelo e compõe o gancho. Tinha de estar sedutora. Respira fundo e antes de empurrar a porta, puxa para baixo a armação do soutien, que lhe magoa o peito.

O pai de Maria inicia-a na primeira valsa, após a entrada glamourosa. Os pés continuam apertados, mas a dor ajuda a que se concentre mais. Enquanto vira e rodopia, coloca os olhos nos vestidos e jóias das outras, mas principalmente nos rapazes da sala. Era a sua apresentação oficial à alta sociedade brasileira, embora já conhecesse muito bem uma grande parte dela. A festa da sua maioridade vinha tarde. Há muito tempo que era mulher.

O fotógrafo da revista da moda tira a primeira fotografia a Ana. Mexe no lenço que a sufoca enquanto faz uma ou duas caras mais fotogénicas. Ao ritmo dos disparos do flash repara nas outras manequins da festa. Não era a sua primeira party rodeada de outros modelos, mas como habitual sentia-se insegura. Conhecia toda a gente do meio, mas não conhecia ninguém.

O aniversariante recebe Sara de braços abertos e convida-a sentar-se ao lado dele. Sente a armação do soutien a entrar pelas vértebras adentro e falta-lhe o ar. Tenta distrair-se com a conversa e a decoração do restaurante. A toda a volta cetim vermelho e preto, flores de lótus e lanternas. Antes do sushi, já tinha bebido dois copos de saké. Queria sentir-se solta e desinibida para fazer o que tinha vontade.

Maria finalmente pára para descansar os pés, que já não sente. Não que o pai dançasse mal, pelo contrário, mas querer esconder uns avantajados 39, numa forma de 38 só podia provocar o entorpecimento. Tudo corria como previsto. Ninguém desconfiava de nada. Ninguém se desmanchava.

Ana dança ao som do reggae, com o lenço a bambolear sobre o peito e com o olhar perdido. Não que o ambiente não estivesse interessante para se olhar, mas queria esconder-se no meio de toda a gente. Parecia que tinha conseguido. Já ninguém lhe tirava fotografias nem pedia autógrafos.

Sara finalmente sente-se solta. Já nem sente a armação do soutien. Não é que este estado de espírito fosse natural. O saké fez a diferença pretendida. Estava perto do seu objectivo. Ninguém parecia importar-se com o que fazia.

A debutante Maria, decidida a mais umas danças com os rapazes novos, levanta-se e dirige-se para o centro do salão. Passa por um grupo de senhores distintos que entre dentes sussurram “...olha esta... toda de branco... não me engana... é uma das garotas insaciáveis das noites de máscara... sei pelo cheiro” Todos riem em uníssono, como só um clube privado pode fazer.

Ana, manequim de sorrisos amarelos, decide ir refrescar-se à casa de banho. Pelo caminho dos encontrões, encontra quem não queria. Afasta-se, desvia a cara, mas num puxão disfarçado de carinho, ele agarra-a pelo lenço do pescoço e chega-a de encontro ao peito. Passa-lhe a língua pela orelha e murmura... “foste a minha melhor virgenzinha... que saudades...”

Sara com o calor, do álcool e das hormonas, vai à casa de banho retocar a compostura. Molha o pescoço de olhos fechados enquanto ouve a porta a mexer. Abre os olhos de rompante com o toque de uma mão entre o peito e o soutien. A mulher revela-lhe ao ouvido “estás linda hoje... queremos os dois ficar contigo.”

Maria tenta sair num andar acelerado sobre o deslizante chão de mármore branco. Os pés não resistem e cai sobre o imaculado salão de baile.

Ana tenta soltar-se com um movimento brusco, mas o lenço na mão do homem aperta-lhe o pescoço e dá-lhe um esticão que a atira para o chão de areia do bar.

Sara com a sua mão pega na mão da outra e fá-la deslizar suavemente para fora do vestido. Ajeita a armação do soutien e quando dá o passo em direcção à porta, escorrega na humidade e cai seca no chão de madeira.

São 23 horas e acabou o baile.

São 04 horas e acabou o concerto.

São 00 horas e acabou o jantar.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito obrigado pelo teu comentário!
Deixa-me cá agora espreitar o teu blog...